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terça-feira, novembro 06, 2007

"Ouvindo vozes"


“A esperança tem duas filhas lindas; a raiva e a coragem”
Sto Agostinho



Estive por quase toda a minha vida preparando-me para este momento. A condição de nada ouvir. Foi indo aos poucos e nem sei ao certo se algum dia de fato ouvi o que todos ouviam. Às vezes lemos histórias nas quais crianças crescem ser saber que determinadas condições vividas por elas não são naturais e sim uma exceção à regra. Um dia, finalmente “descobrem” que o resto das pessoas não enxergam ou ouvem como elas. Percebem que há no mundo, uma classificação geral de normal e patológico. Outras realmente acreditam que não são patológicas e descobrem que são diferentes e depois partem para o caminho da ideologia da diversidade. O fato é que tenho visto e não ouvido tantas coisas por aí que começo a duvidar de tudo, até mesmo se de fato as pessoas que dizem que ouvem, escutam de verdade. São tantos pensamentos pensados dentro de uma cabeça humana. São tantas as vozes diferentes orientando-nos e desorientando-nos, tantas influências, modismos, e outros ismos que nem sei mais se as pessoas ouvem as suas próprias vozes. Meu cérebro está ávido por sons. Quando as pessoas falam, ele se esforça por ouvi-las, fecho os olhos e constato que nada ouço se não tiver a visão me ajudando. Não se trata de leitura labial, trata-se de uma imagem mental do som que meu cérebro produz com sucesso, minimizando minha solidão. E assim, tenho estado enfurnada no meio de gente, cinema, crianças, circo e tudo mais, tudo em nome das vozes que não quero que cessem em mim. Não sei se conseguiria suportar sem isso, meu cérebro é muito falante. Não queria fazer divisões entre corpo e alma e mente e espírito e etc, mas é difícil juntar aquilo que Descartes separou há tantos anos em nome da ciência. Ontem vi “Patch Adams” numa entrevista na TVE. Ele suplicava para que as pessoas se esforcem por pensar, pensar pensamentos lúcidos e críticos, pensar no que está acontecendo a nível global neste momento para além de ser eternamente jovem, bonito, sarado e famoso por 5 min. Com toda a sua magia de palhaço, me fez rir e pensar meus pensamentos de surda. Estou habitada por vozes, quase ouço...quase ouço...na verdade sinto a presença do som, sei que ele ali está, que entra em meus ouvidos, os ossinhos ajudam a empurrar para frente e que lá dentro da minha cóclea algo pifou seriamente. Ontem coordenei uma mesa sobre inclusão, e durante a apresentação dos demais percebi que os sons estavam metalizados como deveria ser ao microfone, novamente, novo teste, fecho os olhos, nada ouço, não sei ainda onde isso vai me levar...mas desconfio que se decidir pelo implante coclear como alternativa terapêutica terei de me esforçar muito para transformar sons produzidos eletricamente em sons “naturais”. Pergunto-me: “Há quanto tempo vc não ouve sons naturais, Angela”. Há anos. Desde os 28 estou protetizada e aos 12 não ouvia com luz apagada, também não me lembro quando parei de ouvir os segredinhos ao pé do ouvido. Mas sempre tive inveja de quem os ouve. As piadas são um mistério, as pessoas riem antecipadamente ao final e não tem graça pedir para repetir o final de uma piada. Pensei que seria desesperador, de fato foi por alguns dias...agora estou com raiva, raiva de mim mesma, pq não consigo usar o telefone. Quero que imagine a sua vida sem o uso do telefone, agora adicione a falta da música, coloque as novas vozes que irá conhecer, complemente com uma reunião importante e, finalmente, imagine o amor sem som....a última situação é desesperadora. Não sei como será, não sei quem tem coragem, para ter coragem comigo de amar essa condição. A raiva é filha da esperança. A coragem é filha da esperança, e o meu coração divide-se entre ambas. O que seria de nós sem a esperança?
Esta condição me faz refletir e agir continuamente e, é nela que me apoio. Que a raiva me dê forças para o erro e acerto e a coragem seja a minha forma de desafiar o destino, de ousar nesta condição afirmando o que eu sou. Estou afirmando que é possível escutar vozes sem ser psicótico, que é possível colocar o som onde ele já não pode ser transmitido como antes, afirmo que a vibração é som, o som que só os surdos entendem, vibração tem voz e melodia, mas não tem alegria nem tristeza e, foi por isso que no lançamento do filme de Babenco não chorei, nem me emocionei, não estava compartilhando a trilha sonora e, apesar de eu ser extremamente visual, a fotografia não supre a estética do som, que é mais visceral, ancestral, sabe? “A emoção acabou,... a minha música nunca mais tocou”. Cazuza estava errado, a emoção não acabou, posso cantar e escutar minha voz, e ela ainda me emociona, e muito, e nenhuma cóclea ferrada pode me tirar isso, eu posso imaginar a minha música predileta e posso escutá-la por que já as escutei antes milhares de vezes, milhares de vezes cantei e me emocionei, e não deixarei isto acabar. Por isso quero ir a um lugar bastante sonoro, quero arriscar voz e violão primeiro, pois quase enlouqueci com uma banda na semana passada. Quero dizer ainda que ouvi o barulho do vento no mar nesta sexta feira. Sai para remar e me desconcentrei nas ondas, e fiquei olhando e ouvindo o barulho do mar, as ondinhas marulhando, marulhando, então vamos remar, eu e meu barquinho.