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sábado, março 01, 2008

Tai Ji Chuan e saúde


Durante o processo de adoecimento e aceitação do diagnóstico de uma doença grave, seguem-se diversas fases conhecidas como negação, raiva e revolta, barganha, depressão e aceitação.
A aceitação de uma doença crônica como a doença renal em seu estágio final, incluindo a adaptação à diálise e a preparação do transplante envolve o engajamento dos familiares, amigos, médicos, terapeutas e, um esforço continuado daquele que sofre a doença. As mudanças corporais e o sofrimento psíquico são fenômenos complexos e de difícil compreensão e aceitação.

Compreender a saúde como um processo criativo que permite lidar com as adversidades da vida de um modo transformador é uma arte.
É muito importante no adoecimento e na busca pela cura a percepção do que é essencial para o bem viver. Nem sempre é fácil manter o foco em um estado de saúde dentro da diversidade de entendimentos que a doença acarreta.

As escolhas feitas ao longo da vida dependem, fundamentalmente, daquilo a que atribuímos valor e, o que é percebido como vital e essencial no dia-a-dia pode ser modificado de uma hora para outra, bastando a vida puxar-nos o tapete. Nestes momentos, mais do que nunca, somos forçados a buscar diferentes caminhos que possam aprofundar a percepção do ciclo da vida.
Uma antiga prática holística chinesa que vem sendo incorporada ao cotidiano da vida moderna de muitos chineses, bem como, cada vez mais, na vida de entusiastas praticantes no ocidente, é o Tai Ji Chuan (também grafado Tai Chi Chuan ou Taijiquan). Originalmente proveniente do sistema das artes marciais chinesas, a prática do Tai Ji Chuan seguiu um curso de evolução próprio, distinto, voltando-se mais para o cultivo da saúde e do bem estar, do que a destreza na luta ou na defesa pessoal. Em consonância com as bases fundamentais da medicina tradicional chinesa, a saúde e o bem estar devem se cultivados de forma holística, ou seja, integrando o corpo, a mente e o espírito num todo orgânico. Tal concepção remonta os ensinamentos da doutrina Taoista, que concebe uma interligação entre tudo o que há através de um contínuo movimento dinâmico entre os opostos complementares, simbolicamente representados pelas duas polaridades energéticas YIN e YANG. Desta forma é que Tai Ji Chuan se traduz como a “arte marcial da suprema polaridade”.
Representado graficamente pela mônada chinesa, o símbolo do yin-yang é descrito por Huang (1999) como “o entrosamento, a união-dissolução do movimento dentro de um círculo cujas energias semelhantes, e ao mesmo tempo contrastantes movem-se juntas”.
Nesta representação, dentro da área em negro notamos um ponto branco, e na área branca em forma de peixe, um ponto negro. A idéia básica teria como finalidade demonstrar que o todo, ou a unidade, abrange a polaridade e o contraste. O contraste, como bem ilustra o símbolo, é percebido não como oposição antagônica, mas como complementariedade em contínua interação dinâmica. Segundo Huang, a prática do Tai Ji Chuan pode nos ajudar a perceber o desequilíbrio e o recuperar o centro, restabelecendo o fluxo dinâmico entre os dois pólos. O movimento lento e circular do Tai Ji Chuan ajuda a promover a integração entre o corpo e a mente do praticante, devido ao estado meditativo que a prática induz. O Tai Ji Chuan é, portanto, uma forma de meditação em movimento, já tendo sido amplamente comprovada a sua eficácia na dissolução de tensões internas, sejam físicas ou emocionais. No Tai
Ji os movimentos são externamente ‘suaves’ mas internamente ‘vigorosos’. Os movimentos aparentemente suaves são gerados internamente a partir do sítio da energia vital, o “Dan Tien”, localizado numa região interna do corpo, três dedos abaixo do umbigo, de onde o “Chi”, a energia vital, emana e se propaga por todo o corpo durante a prática do Tai Ji Chuan. A suavidade no Tai Ji, portanto, não é uma suavidade mole, vazia, mas uma suavidade com substância, carregada de energia vital, plena de “Chi”.
Podemos descobrir o quanto é agradável e saudável a prática de uma habilidade física e espiritual como o Tai Ji. Segundo os princípios das artes marciais, o corpo não é considerado um inimigo, mas sim, uma grande e preciosa ferramenta e, a mente, não é considerada um final, senão uma ponte. Os exercícios de meditação em movimento como o Tai Ji Chuan, Lian Gong, Chi Kung entre outros, tem como principal objetivo, a promoção e a manutenção da saúde por meio de técnicas respiratórias, meditação, posturas e movimentos.
Muitos estudos tem sido conduzidos na área médica, inclusive com grupos de controle por um período de tempo, enfocando os efeitos da prática regular do Tai Ji Chuan sobre as condições físicas, fisiológicas e de saúde de uma forma geral. Alguns autores da área de geriatria e medicina do esporte buscam a comprovação dos efeitos do Tai Ji na manutenção do equilíbrio corporal, no controle da pressão arterial, na fibromialgia e na artrite. Os movimentos suaves do Tai Ji ajudam na manutenção da flexibilidade, da postura e do equilíbrio e, no relaxamento e fortalecimento muscular dos membros inferiores. Outros estudos vem comprovando a eficácia da prática do Tai Ji sobre a redução da pressão arterial e sobre o sistema cárdio-respiratório, reduzindo o nível de cortisol na corrente sanguínea. Grande parte dos artigos referem-se ao estudo do envelhecimento e da prevenção de quedas.
Alguns movimentos do Tai Ji promovem exatamente uma sensação de “fluir das ondas” conectando o praticante consigo e com o ambiente natural, tornando a percepção deste como parte integrante de si. O Tai Ji Chuan deve ser preferencialmente praticado em lugares abertos, ao ar livre, para que o praticante possa estar em conexão com a natureza. O contato com a luz solar, a brisa marítima, o frescor das montanhas, o farfalhar das folhas das árvores e o acalanto do céu são terapêuticos por si só e devem ser integrados à pratica do Tai Ji. Numa situação extrema oposta, estão os pacientes renais crônicos, nas suas rotinas de hemodiálise. Noites, dias e tardes vividas em lugares fechados, com odores e sensações desagradáveis, temores e receios de todo o tipo. A dependência de máquinas, movimentos limitados por agulhas, câimbras e dores articulares resultam numa linguagem solitária repleta de simbolismos e perdas.
O céu para o renal crônico por vezes é nublado e a luz artificial das salas de tratamento vão, sistematicamente, povoando o imaginário dos dialisandos. Parece quase inevitável a fuga, o desejo de não querer viver esses momentos. Não é incomum negar o momento de diálise e isolar-se pelo sono, assistir passivamente à tv ou permanecer prostrado sem nada a fazer. Mas o momento existe e ali está, a cada segundo que se respira e, não se pode ignorar isso. A liberdade de ir e vir não deve ser roubada dos dialisandos. A esperança e o medo são os sentimentos prevalentes neste grupo. Nenhum destes sentimentos operam no presente. O presente é constituído de restrições alimentares, de ciclos intermitentes de inundar o corpo com toxinas que alteram a cor da pele, o hálito, os ossos e as mentes que aguardam por uma filtragem sistemática do sangue.
De fato é muito difícil buscar a saúde nestas condições. Mas a saúde lá está, mesmo no corpo doente, fragilizado, intoxicado e combalido pelo sofrimento. Em grande parte é no sofrimento que o espírito ganha força e desperta. Há espaço neste corpo para um movimento gerador de transformação, de força e de suavidade. De fato há muitas possibilidades e o Tai Ji é uma delas. Um movimento constante de ir e vir, sem muitas preocupações quanto ao destino final. Para além de movimentos que promovem vigor interior, tonificação dos músculos, aumento de flexibilidade, coordenação e força, há a redução do estresse, o fortalecimento da energia vital e o aumento da consciência corporal. Uma consciência de estar vivo, em todos os momentos.

Percebemos na prática do Tai Ji, por experiência pessoal, e por observação dos praticantes devotados, que mesmo um corpo adoecido pode reencontrar a saúde por meio da meditação em movimento. Aos poucos vai ocorrendo um diálogo entre a mente e os órgãos internos liberando a linguagem do coração, aquela que perdoa as limitações de um corpo que já não pode responder com toda a desenvoltura do corpo são, e exatamente por este motivo, necessita ainda mais de compaixão.
Durante a prática do Tai Ji Chuan, o praticante deve esvaziar a mente de pensamentos que possam roubar-lhe a atenção, que deve estar focada na sintonia do corpo com o movimento e a consciência. O eixo vertical, que alinha a coroa no topo da cabeça com a coluna vertebral até o cóccix, deve estar aprumado, estabelecendo assim, através da postura corporal correta um canal de conexão entre o céu e a terra. Esta consciência axial deve se estender até a sola dos pés, em busca de um sentimento de “enraizamento”, suscitado pela imagem de uma árvore que aprofunda as suas raízes para manter o seu eixo vertical. Obviamente, o enraizamento no Tai Ji não vai imobilizar os pés no chão. O movimento lento e cultivado pela prática conduz o eixo e o enraizamento ora para uma perna, ora para outra, conforme os passos dados ao longo da sequência de movimentos e formas que se sucedem. Cada passo deve ser dado com esse sentimento de enraizamento, ou seja, de profunda conexão com o chão, com a terra. Alia-se a este trabalho de enraizamento, a prática do relaxamento, tanto físico como mental, por meio de uma respiração naturalmente lenta e profunda. O corpo deve estar solto, e a mente tranqüila para que os movimentos se sucedam de forma fluida e contínua, propiciando, assim, uma boa circulação do Chi.

O corpo é a nossa primeira base de consciência instintiva, de fome, defesa, por meio dos quais a consciência emerge. As experiências e memórias verbal e corporal vivenciadas pelos renais cônicos nem sempre são boas devido a rotina e angústia do tratamento necessário. Após o transplante renal a primeira impressão vivenciada é a de libertação, renascimento. A sensação de ter trocado de corpo é vivido como uma benção e a manutenção da saúde uma necessidade. Em ambas as condições: diálise ou transplante são necessários a paciência e o auto-conhecimento para suportar a prova da doença e das limitações. Quando praticamos Tai Ji, observamos e sentimos no corpo uma prática possível, baseada em movimentos possíveis para pessoas com limitações articulares, cardiovasculares, metabólicas, entre outras. A cada seqüência somos testados em nossa paciência, perseverança e persistência por meio de uma prática que alia movimento físico e mental. O que importa não é um desempenho quantitativo, mas qualitativo que se traduz, metaforicamente, como um caminho trilhado pelo praticante.

A vida nos convida a explorar várias direções para encontrar novos significados e olhar uma ou mais situações de modos diferentes e criativos. Quando mantemos uma postura inflexível a mudança dificilmente ocorre. Quando abrimos finalmente os olhos, podemos perceber que tudo pode ser mais fácil do que imaginávamos. A criatividade não tem fronteiras de qualquer tipo e a mente humana não deve ter restrições ou barreiras para desenvolver suas capacidades. Aos meus amigos renais crônicos faço um convite singelo: experimentem J. Experimentem cada momento de suas vidas, agindo de forma a transformá-la e de vivê-la em paz.
“Não se preocupe em ‘entender’.
Viver ultrapassa todo entendimento”

Clarice Lispector – A via crucis do corpo.


Eu pratico Tai Ji há dois anos e meio e o compreendo como uma forma de emancipação definitiva da cadeira de hemodiálise na qual sentei-me por oito anos.
Eu e Chang escrevemos este texto a 4 mãos.
Chang Whan começou a estudar e praticar o Tai Ji Chuan em 1989 na California com a Mestra Shen Hai Min. É professora de Tai Ji Chuan em Niterói desde 1994.