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sábado, fevereiro 11, 2006

Cronologia de uma internação

Sexta dia 20 de Janeiro: fui comunicada que deveria me internar para fazer uma biópsia renal e retirada da fístula de meu braço.

Segunda dia 06 de Fevereiro: interno-me no Hospital das clínicas, unidade de transplante renal lotada. Minha primeira internação pós-transplante. Isto não me agrada muito. Percebo que não quero estar ali. Meu leito é o numero 7, cabalístico. Leito 8 ao meu lado uma chilena que havia perdido o tx e esperava por uma vaga numa unidade de diálise para iniciar programa regular de tratamento. O banheiro está interditado para meu uso, preciso usar o banheiro do leito 12, logo ali na esquina.
Há um rapaz de 24 anos recém-transplantado na enfermaria em frente a minha. Ele grita muito alto, não sei por quê. Dei uma rápida espiada pelo vidro, estão fazendo uma biópsia renal nele, a agulha, como sabemos, é imensa. Sinto um frio percorrendo meu corpo e percebo que não quero biopsiar. Sou informada pela residente que terei de fazer estocagem de meu sangue como preparo para a cirurgiado braço e que não há vaga na semana para fazer minha biópsia. Sentimento: frustração. A noite fui à capela, luminosidade tênue sobre o Cristo
e sobre a pequena estátua de nossa senhora Aparecida, da qual minha doadora é devota. Peço por todos nós, tentei relaxar e meditar, o calor é intenso, há muitos mosquitos sugando minhas pernas. Despeço-me de Deus e pergunto o que ele espera de mim

Terça dia 07: Coleta de sangue, começo a juntar meu xixi por 24 hs. e a sondar meus colegas de internação. Converso com Camila uma moça com carinha e jeito de criança, 17 anos, internou-se para tratar uma possível infecção. Começo a conversar com a chilena, ela quer saber se eu trabalho, deve ser pq eu não páro de abrir e fechar livros, faço anotações e isso a deixa meio confusa, afinal eu deveria estar aposentada. Digo que trabalho regularmente. A esta altura já estou bastante ansiosa, pois percebo que nada vai acontecer sobre o céu do HC. Tomo coragem para conhecer o rapaz que grita alto. Entro em seu quarto e vejo que ele sofre intensamente, sua face é de dor e medo. Faço amizade com sua irmã, fico sabendo que ele é surdo há mais de cinco anos. Aproximo-me e toco seus pés. Seu transplante não está indo bem. Passo a conhecer pormenores de sua história, o menino sofre desde que nasceu, daqueles que não conheceram outra vida. Ninguém entra em sua enfermaria, o leito ao lado está vago. Sua irmã e sua mãe avisam sempre que ele berra muito e não teve um desenvolvimento normal. Percebo que a família tem muita dificuldade em lidar com ele. O pai do rapaz é agressivo com ele e com a enfermagem. Está claro que não farei nem biópsia, nem cirurgia do braço, pois não houve planejamento. Páro de estudar e inicio um desenho com base na foto de uma tela em exposição no CCBB-SP. Uma margem de um rio e uma floresta exuberante. Muito Verde, azul, marrom para o tronco das palmeiras e árvores. O verde me conforta, meus pensamentos estão agitados, estou tensa e algumas notícias não são boas. A chilena só abre a boca se eu pergunto algo, acha estranho quando faço a seqüência do Tai Chi, mas finge que não vê. Ela ronca muito alto, não escuto, mas vejo que ela bufa como alguém que ronca. Ela está sofrendo, mas sua resignação me comove, porque ela é muito humilde, deixou sua terra para tráz e não quer voltar mais. Conta-me que seu filho também faz diálise e que nunca trabalhou, começará agora já com mais de trinta no seu primeiro emprego. Termino o desenho, algumas pessoas viram e gostaram, Camila veio ao quarto para admirar, tb achou bonito. Deito-me na cama e olho apenas, levanto-me e decido que o desenho deve ser dado a Antonio, o moço surdo pelo qual já sinto afeição. Em sua enfermaria converso com sua irmã. Massageio os pés de Antonio. Pela primeira vez tento conversar diretamente com ele. Sua irmã conta-lhe que tb não escuto bem e que uso uma prótese. Ele quer colocá-la em seu ouvido! No direito! Digo para a irmã que ele ouve melhor no direito, ela não sabia. Ele é muito ansioso, como todo surdo. Cada vez gosto mais do rapaz, não era o que esperava encontrar, não vejo agressividade e compreendo o motivo de seus berros. Gostaria de dar-lhe algo, busco imediatamente o desenho agora com uma dedicatória: “Para Antônio, uma margem de esperança. Sei que vai conseguir!”. Sua irmã pede para que ele leia em voz alta. Ele lê muito bem! Pergunta-me se eu desenho. Digo que sim. Ele parece ter gostado. Pergunto se quer que coloque na parede ao lado de seu leito. Ele aprova. Despeço-me, hora do ronco da chilena.

4 hs da manhã de quarta: Levanto-me para fazer xixi, olhos colados, caindo de sono, preciso atravessar todo o corredor para ir ao leito 12, agitação, uma maca saindo e outra entrando. Tx na certa. O sono é grande, amanhã entendo.

Quarta dia 08: O médico da visita decide por minha alta e suspende a biópsia. Fico exultante. Para o meu leito já há alguém mais necessitado do que eu.

Faço meus exercícios de Tai Chi, aproveito a ausência da chilena. O médico retorna e diz que minha alta foi cancelada por minha médica. Serei transferida para a urologia para ceder meu leito. Pergunto-me: O que vim fazer aqui?!

Fui dar bom dia a Antonio. Seu leito está vazio. O leito ao lado agora ocupado pelo Sr das 4 da matina. Este parece estar ótimo, nunca vi alguém com menos de oito horas de tx tão desperto e falante, conversamos sobre a Revolução de 64 e outros bichos. O monitor cardíaco mostra freqüência e pressão normais, pondero comigo mesma se ele não deveria estar descansando e onde foi parar a maldita dor do pós-operatório. Vou procurar Antonio, no balcão da enfermagem a residente me informa que ele foi a óbito durante a madrugada. A maca que saiu.... Preciso muito chorar, ainda não consigo entender. Fui para meu quarto abaixei-me junto ao pequeno armário destinado a guardar coisas. Se pudesse entrava lá dentro e fechava a porta para chorar, onde estava Antônio? A outra margem. Uma passagem lida num livro há pouco tempo veio em minha mente: não há melhor presente para uma pessoa que está partindo do que massagear seus pés,é uma forma de ligá-la às suas raízes. Pensamento: só vim aqui para isso.
Tive alta na mesma tarde

Angel

Um comentário:

Angel disse...

Querida Ana

Obrigada pelas palavras.
Se a equipe médica realmente decidir pela biópsia estarei pronta e me lembrarei que já passastes por duas.Assim não me sentirei tão sozinha...(rs)
Beijinho carinhoso pra vc também
Angela