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segunda-feira, setembro 04, 2006

Leque


Eis a questão a ser pensada: o perfil do egresso que queremos formar no novo curso de graduação de Terapia Ocupacional e Fisioterapia do Cefet. Ou ainda, o terapeuta por quem gostaríamos de ser atendidos. Tarefa difícil em tempos de produtividade, alto consumismo, conhecimento efêmero, distorcido e descartável. A competitividade é a marca do nosso tempo nos quais “dezoito segundos” parecem ser o tempo máximo de escuta entre uma pergunta e outra. Pensar no profissional talvez seja uma tarefa fora do nosso alcance, pois como poderíamos antever o caminho que cada um poderá tomar? O profissional não está pronto nem ao menos próximo de estar pronto até o momento em perceba o seu chão, o chão do outro e as inúmeras possibilidades do caminhar. Poderia encerrar aqui levando em consideração que ninguém forma ninguém, que vocação é coisa de nascimento e que conscientização é um ato individual, recorrendo às palavras de Paulo Freire. Poderia também, tentar recordar das pessoas que me influenciaram como pessoa quando, vindo a ser terapeuta (ainda não sabia que era) decidi-me que era ali que queria estar. Aquelas lembranças que fazem a diferença nos momentos cruciais da vida: meu pai que mostrava uma persistência visceral frente a todos os problemas e fazia-me entender que há sempre uma porta aberta para aquela que se fechou. Minha mãe e sua confiança em Deus e nos espíritos. Todos somos não é mesmo? Então por que não confiar logo em si mesmo? Foi o que aprendi sozinha. Minha irmã que se afastava para pensar e quando retornava era para tomar a decisão que fazia a diferença. Posso estar divagando demais, mas, afinal, quem são as pessoas que lidamos, senão pessoas que estabelecem relações? E tudo o mais que vem do meio ambiente; as percepções, o movimento, a imobilidade, a comunicação, a luz e a noite, e coisas que ainda não conseguimos ver, são pequenos recortes de realidade, a coisa vivida em si que nos coloca junto, inseridos numa cultura que é o caldo dessa história toda. Lembrei-me dos livros, de muitas histórias contadas e lidas que iluminam o caminho. As biografias, que alimento maravilhoso: Lao Tse, Che, Castaneda, Gandhi, Isadora Duncan, Van Gogh, Frida Khalo, Dostoievski, e também a história do profeta Gentileza, do “Jhonny vai a guerra”, Hitler, da Olga Benário, de Francisco de Assis, de Madre Tereza, de Chico Xavier, e Jesus. Todos eles passaram por aqui, neste mesmo chão que ora pisamos, em outro momento histórico, provando o preço de um ideal, ou a distorção dele

E há a poesia; Neruda, Pessoa, Jobim, Lispector:

...”e das plantas vinha um cheiro novo, de alguma coisa que se estava construindo e que só o futuro veria”.

Sim, a poesia é fundamental neste egresso, neste que está indo de encontro a uma realidade maior que vai além de si e do seu entorno, que vai de encontro com a própria humanidade.

Tentei imaginar coisas que senti falta nas situações de desbravamento de território, de campo profissional, pensei na empatia e na falta dela, na comunicação, na escuta e no verbo. No silêncio, no orgulho e na vaidade, na omissão e no socorro, no estar junto e no sair de fininho. No compartilhar e no desprezar, no profissional-mito e naquele que não tem pasta de couro e anda de tênis. Pensei no lugar de quem senta para tratar e ser tratado, naquele que conhece a doença dos livros e da clínica e adoece. Daquele que conhece as ruas e as favelas pelo jornal das oito e pelos vidros fechados do automóvel e vai a campo pegando piolho da cabeça das crianças, até porque só se pega piolho aquele que cuida de cabeças. Recordei-me das avaliações e dos planos de tratamento, dos locais de estágio, dos meus professores (aqui e ali), tentei mesmo me recordar se houve algum mestre, aquele que agiu como um arqueiro e viu em mim a “tal flecha viva” de que nos fala Gibran. Não me recordei. Meus pensamentos percorreram imagens de filmes, trechos de beleza estética, performances, teatro, máscaras, música que emociona, obras que respiram como seres orgânicos, e me fizeram sentir formas, cores, cheiros, espaço e movimento e tudo isso me fez apreender.
O que desejo, espero formar, aprender junto, transformar, é algo dinâmico, pois não há relação terapêutica-educativa sem o outro, e sem os meios necessários para tal tarefa (não utilizei a palavra ferramenta propositalmente, embora goste muito dela).
Penso ser fundamental a apropriação de determinadas virtudes como a arte de ver, ouvir, falar e silenciar. Competências como o domínio de uma arte, de um modo de fazer, de propor o pensamento e o diálogo. De um espírito oriental para entender o ocidental, dos paradoxos, das ambigüidades que promovam o discernimento. Saber lidar com a motivação e a criatividade, conhecer teoria e prática. Ser criativo acima de tudo e aceitar o novo como um desafio altamente positivo, um exercício de emancipação e de escolhas.
Tem ainda a tecnologia em toda a sua amplitude, do palito de fósforo passando pela câmara escura, lanterna mágica, desenho animado, realidade virtual e arte digital. Bisbilhotar, conhecer, construir, destruir e aprender a fazer e, a fazer de novo. Lembrar que técnica sem criação não promove conhecimento, não amplia horizontes e são apenas fruto de “tempos modernos”. E isso me lembra Chaplin, que lembra Orwell, que lembra novela das oito, que lembra dos muitos livros a ler, pessoas a conhecer, vidas que devem ser vividas em liberdade (de todos os tipos não vou enumerar senão não fica mais parecido com liberdade). Abomino quando profissionais chamam pessoas de doentes, os nossos não devem aprender isso, devem ser levados a compreender que todos são indivíduos vivendo seus momentos especiais que os tornarão exatamente no que acreditam e, que parte do que vierem a acreditar, depende daqueles que estão no ensino, nos palcos, nas artes em geral, na mídia, na política, nas ruas, no pai e na mãe e voltamos então ao lar, voltamos a casa e ao chão nosso de cada dia. Que seja um chão de infinitas possibilidades, de raízes que se espalham e são nutridas por diversas fontes inclusive pela espiritualidade, coisas visíveis e invisíveis. Espero me fazer compreender ao menos no que não espero em nossos egressos; não quero mais o especialista, que só vê o órgão doente ou pequenos recortes de realidade que nada dizem sobre a condição humana, e não consigo acreditar em um educador que não ouse aprender diariamente. Acho que acredito num egresso que busque em sua profissionalização um olhar de primeira vez, aquele “olhar de estrangeiro” em terra desconhecida, em que tudo é novo e pronto a ser descoberto.
Que digam as crianças da apresentação de hoje no Palácio de Cristal, a novidade de aprender.
"Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo”
Fernando Pessoa

Um comentário:

Angel disse...

Simplesmente amei!
Obrigada Ana

Angel