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terça-feira, outubro 18, 2005

Imagens e palavras





Quis ver esta fenda de perto.
Uma imagem linda
Não temo a queda, temo o que ignoro
Este é um espaço Trans
E o transplante viria como uma salvação. O “milagre” esperado. Uma imagem que nos remete a Deus certamente.
A imagem que temos do milagre é algo vindo dos céus. Ainda que seja intermediado por um “gênio da lâmpada”, surge do desconhecido a realizar nossos desejos. Gênios da lâmpada não existem e milagres não caem do céu.
O transplante veio, suado, chorado, lento, no momento que deveria vir. E este momento foi quando parei de esperar ansiosamente por ele.
Neste período produzi muitas imagens: fotos, pinturas, desenhos. Plenitude e busca de significados pela cor, forma, luminosidade, símbolos e emoção. O essencial deixa espaço para a imaginação do observador.

Imagino muito sobre o momento da cirurgia, nada consigo lembrar conscientemente. Minha última imagem foi a despedida da minha doadora e a entrada na sala do centro cirúrgico. Aspecto lúgubre, sala pequena. Virei o pescoço para o lado direito e percebi uma luz. Vi uma outra sala ao longo de um corredor. Uma enfermeira apareceu e fez os primeiros cuidados.
Não sentia frio, medo ou ansiedade. Enfaixou minha fístula no braço esquerdo. Desejei muito ver um rosto amigo e o cirurgião apareceu. A anestesista entrou e preparou meu braço direito. O médico sorriu pra mim e pegou a minha mão. Olhei para ele, fiquei feliz em vê-lo. Perguntei se poderíamos fotografar a cirurgia, ele anuiu e disse que não via problemas. Sorri para ele, agradeci e não me lembro de mais nada...
Quando acordei, ainda estava tranqüila, sabia que a cirurgia havia terminado e ainda estava na mesma sala. Olhei para enfermeira e perguntei: - Acabou? - Sim. Ela disse. Ainda sonolenta, mas sem dor, senti meu trajeto de retorno. Rostos olhando para mim, o elevador, o tranco, Unidade de transplante renal, quarto. Depois flashes, muita gente ao redor. Minha mãe segurava minha mão. Reconheci o rosto do residente. Pedi sedativo.
- Sedativo Ângela? Você quer analgésico, né?
- Não, sedativo. Quero apagar...
Sabia que a dor viria com tudo logo, logo. E veio.
As fotos foram feitas. Só me senti pronta para olhá-las um mês depois. Mostravam a preparação da cavidade, o rim doado na cuba sendo preparado e o transplante efetivamente. Esta última foto foi algo muito revelador. Meu primeiro sentimento ao vê-la foi de espanto. Um rim tão grande, tão vermelho carmim, tão vivo, enfim, tão diferente das peças anatômicas dissecadas que eu tinha em mente. Sabia que um rim vivo não era pardacento, mas nunca havia visto algo semelhante em mim, talvez. A imagem de minha barriga com um corte que me pareceu imenso e eu não conseguia localizar meu umbigo! Era uma cena limitada: barriga aberta, campo cirúrgico azul cobalto, mãos habilidosas enluvadas e sem rosto, muitas pinças cirúrgicas, um dreno saindo próximo a lateral do corte e sangue, como deveria ser. Transplantada efetivamente! O registro visual do momento. Entre o azul dos campos, transplantado em meu corpo, mais um novo rim. A vibração do vermelho, da vida que mudava de morada. Ambigüidade também, uma parte de outro ser vivo em mim. Além dou outro-Trans.
Rompendo a casca limitada da dor para emergir numa nova realidade. A imagem do rim, sua cor efetivamente vibrante dada pelo meu sangue. Uma nova identidade em plena formação. A “separação das águas” acontecendo novamente em meu corpo.
Não tolerei ver a foto por muito tempo que me pareceu ser longo embora a apreciação tenha sido por breves segundos. Fechei-a e não retornei a ver. Não mostrei a ninguém e fiquei assimilando na mente aquela imagem surpreendente. Quando a revi já não produziu o mesmo impacto, olhei sem medo e fiquei percebendo os detalhes. A imagem do transplante é repleta de significados; a estética luminosa e vibrante do vermelho, a forma harmoniosa, os esforços empregados em conjunto em favor de um ideal. Transcendência.
Ter visto a foto do transplante teve um impacto muito positivo sobre mim. Uma representação do momento do qual não tenho lembrança consciente, a visão do órgão que renova meu sangue todos os dias.
O cérebro não distingue entre o que vê e o que lembra.
O que a imagem observada nos inspira?
Quais lembranças serão armazenadas?
O que estamos construindo mentalmente?
O quanto da imagem observada da foto do transplante tem me influenciado para a incorporação e aceitação do novo órgão?
O conhecimento é mais interessante do que a ignorância.
Enfim...Imagens

Ângela, 28/08/2005

Um comentário:

Angel disse...

Oi Ana!
Se puder ou quiser escreva um poquinho sobre sua experiência.
Beijinho do Brasil e sucesso!
Angela