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sexta-feira, abril 07, 2006

Juntando as partes

Começamos a criar quebra-cabeças, eu e minha irmã. Eu no Rio, ela em Floripa. Achei que seria interessante termos motivos adultos para tratar alterações da memória visual, atenção e funções visuo-espaciais. Temos Leonardo da Vinci, Vermeer e Van Gogh até agora. Rostos são um bom motivo. Quando conhecidos ajudam a testar gnosia para rostos. Aqui não há dificuldade no reconhecimento e sim na estruturação visuo-espacial, que pode ser observada na arrumação das partes da representação do quadro de Mona Lisa. Quando trabalho algumas posturas simples de Tai Chi com o Sr da foto, fica evidente a alteração de propriocepção, simetria e lateralidade e, assim, entre uma postura e a montagem de um quadro famoso vamos tratando, até chegarmos a conclusões bem simples do tipo: juntar as partes pode ser um processo bem difícil após uma lesão cerebral.
Eu que não tenho lesão neuronal nem nada (acho), também encontro difculdade na junção das partes no grande todo. Depois que comecei a acupuntura ficou claro que os bichos começaram a sair debaixo do tapete. Sentimentos e emoções que varri e escondi como mecanismo de defesa e até mesmo negação começaram a aparecer e foi ficando evidente que era hora de serem trabalhados. Vieram lembranças da época da separação e pude perceber claramente que havia mentido para mim mesma para suportar tanta dor num período que dor alguma poderia ser suportada, além daquelas que vinha carregando durante a preparação do transplante. Senti raiva, muita raiva. Tentei arrumar meus livros, minha sala onde atendo, meu carro, tudo que era material. Juntei meus livros espalhados e encaixotados desde quando deixei meu apê no qual morava com Fernando.
Tive coragem de abrir, arrumar e organizar meus arquivos. Mil papéis surgiram, história encaixotada. Fotos, muitas fotos. Meu álbum de casamento. Tarde de domingo, Janeiro, verão. Eu mesma escolhi o local. A Fortaleza de Sta Cruz na entrada da Baía de Guanabara. Havia a beleza arquitetônica harmonizada com o mar e o céu. Chamamos uma juíza e só houve civil. A mesa foi colocada em frente a capelinha do séc XVIII, que ficou com as portas abertas. Estávamos muito felizes. Lembro de olhar os rostos um a um. Meus pais,
minha irmã e cunhado, minha avó paterna, meus amigos...Quando olhei para Fernando vi amor e cumplicidade. Não temia, confiava em mim e nele. Apenas uma das muitas lembranças durante a arrumação.
Ao final fizemos uma pilha (eu e Dina) e colocamos fogo no lixo. Parte de minhas coisas estão no sítio de meu pai. Lá há muito verde. Ficamos olhando as labaredas. Deixa queimar. Coisas que não me servem mais. Não queimei o álbum, nem nenhuma de minhas fotos. Foi uma queima real e simbólica de tudo que Fernando "deixou para traz e nunca veio buscar". Coube a mim, arrumar e dar um fim a tudo: papéis, móveis, pratos, copos e talheres, porta retratos, tudo que há numa casa. Numa casa que fechei e somente agora consigo abrir. Meu tempo necessário.
Uma parte de duas vidas.
Antes de nos separamos, eu já havia voltado para a diálise, buscava uma forma de transplantar pela terceira vez, trabalhava no hospital pela manhã e na clínica à tarde e fazia meu tratamento das oito à meia noite.
Ele já estava com uma amiga nossa em comum e nunca me disse a não ser meses mais tarde quando eu perguntei. Tinha desejo por mim, chegou a falar em amor quando saiu, mas achava-se jovem demais. Fiquei esses dois últimos anos pensando - Jovem demais para quê?
Minha dor consiste em ver todos os dias meus diversos pacientes com problemas gravíssimos convivendo e partilhando suas sinas lado a lado, como marido e mulher.
Minha casa, meu templo, meu tempo

Angel

Um comentário:

Angel disse...

Ana

Não teria sobrevivido a três transplantes e oito anos de diálise sem apoio. A recepção de um órgão por si só é um meio muito bonito de estar acompanhado.
Meu aprendizado é muito intenso porque ao que parece minhas provas são muito intensas de diversas formas.
Já se aproxima a calmaria por aí, não fique triste
Beijinho
Angel