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domingo, abril 23, 2006

Supermercado de órgãos


Chamada da Revista Época desta semana: “Supermercado de órgãos. Uma corrente de médicos dos Estados Unidos defende a compra de rins e fígados para transplante. O Brasil deve entrar nessa?

Vou tentar blogar de forma mais “imparcial” possível . Quem quiser pode postar suas opiniões a respeito.

A reportagem levanta a questão da doação remunerada de órgãos como uma possibilidade de redução da fila de espera e regularização do comércio hoje existente. A polêmica começou nos EUA por meio de um artigo de um médico transplantador chamado Eli Friedman que defende a idéia da criação de uma agência governamental para intermediar as transações entre compradores e vendedores. Ele acredita que as campanhas de doação de órgãos, embora sistemáticas e intensas nos EUA não foram suficientes para a redução da fila de espera dos receptores e, já que estes estão comprando órgãos em países em desenvolvimento, então que isso ocorra sob os olhos da lei, fornecendo amparo a dupla doador (vendedor de seu rim, parte de fígado, etc) e receptor (aquele que vai desembolsar segundo cálculos do economista prêmio Nobel de Economia, a quantia em torno de US$ 40 mil).

Vejam as opiniões que foram coletadas acerca das possibilidade de justiça em transações como essa (doação remunerada):

A nefrologista Cristina Castro presidente da ABTO acha que “Regulamentar as vendas é manter a desigualdade: os países em desenvolvimento vão continuar fornecendo órgãos ao primeiro mundo”.

O cirurgião Silvano Raia (transplantador pioneiro de fígado inter-vivos): “Assim como o comércio de órgãos, o estupro é ilegal e continua acontecendo. Nem por isso deve ser regulamentado”

A questão da autonomia e liberdade individual é levantada por Volnei Garrafa, que sustenta que o direito de fazer o que quiser com seu próprio corpo tem suas bases na bioética anglo-saxã: “A autonomia virou um princípio acima dos outros três, que são a beneficência, a não maledicência e a justiça”. A opinião de uma provável receptora de transplante de fígado alia-se ao discurso da autonomia e ela questiona que se uma prostituta vende o corpo, porque uma pessoa não pode vender um órgão e salvar alguém?”. É de se pensar, embora saibamos que não há nenhum altruísmo na venda de órgãos.

A questão da doação remunerada deve cair em breve na boca dos brasileiros já que é uma idéia que irá criar muita polêmica.

Passei oito fazendo hemodiálise, estou no terceiro transplante renal (nenhum comprado!), fui presidente de duas associações de renais e acho saudável e inevitável a discussão sobre a doação remunerada. Questões relevantes foram evidenciadas na reportagem por meio das entrevistas. Só ficou faltando entrevistar os receptores que conseguiram um órgão por meio de comércio, pois este tipo de transplante não costuma resultar em sucesso e desencorajam o receptor a tentar um novo transplante. Outra questão que ficou de fora é a prática de transplantação remunerada na qual são oferecidas em consulta médica a expectativa de um transplante de cadáver num período aproximado de três meses mediante pagamento. Embora pudéssemos entender que o pagamento fosse destinado a remuneração da equipe fora da rede pública, transplantes de cadáver só podem ser realizados por meio do SUS e o prazo de espera é em torno de, no mínimo dois anos. Felizmente isto não é a regra, mas mostra que não é só o doador remunerado que age de forma mercantilista.

Nunca conheci um receptor que tenha pago diretamente a alguém pelo órgão transplantado. Gostaria de conhecer, pois acho ainda mais grave, embora reconheça que esta atitude seja apoiada no desespero. Também nunca tive contato com alguém que vendeu um órgão. Já vi anúncios pelos idos de 85-86 de venda de órgãos. Gostaria de saber o que move essas pessoas a vencerem o medo da cirurgia, a perda de uma parte de si, por um bom punhado de papel. Acho, a princípio, difícil acreditar que esse tipo de doador esteja generosamente interessado em salvar a vida do receptor, visto que não há uma relação de amizade, compaixão ou algum sentimento motivador deste tipo. A população de receptores pobres (a maioria) não poderá pagar por um rim ou pedaço de fígado saudável. É, portanto, um comércio desigual. Na fila continuarão os pobres sofrendo ainda mais em seu tratamento conservador visto que o repasse de verbas para hemodiálise já está bastante defasado e tenderia a cair ainda mais, pois pobre não tem voz nem vez. E, uma vez legalizada a compra e venda de órgãos, quem alimentaria a demanda desse comércio?

Acredito que o caminho está no fortalecimento dos sentimentos de compaixão e do altruísmo

Pegando carona na proposta de Leonardo Boff, que reza que tudo se mantém religado num equilíbrio dinâmico, e também nas palavras de Isaltino Neto, que vai doar parte de seu fígado para uma amiga, (entrevistado pela revista Época): “- Jamais teria coragem de vender um órgão. Faço isso por solidariedade”. Já ouvi, senti e acreditei nisso três vezes. Sei que muitos amigos meus, renais crônicos, não compartilham da comercialização de órgãos, apesar de todo sofrimento inerente ao adoecer. Acho que para aqueles que acreditam que sua vida está ameaçada e preferem comprar um órgão, é preciso lembrar que todos iremos partir um dia, mas seria mais bonito refletir antes sobre a condição que a vida lhes impôs sobre o doar e receber.

Comentando a imagem, trata-se do rim de minha doadora no momento em que estava sendo preparado pelas mãos do cirurgião para ser transplantado em mim.

Beijos, Angel.

2 comentários:

Marco Aurélio disse...

Angela

Cheguei até o seu blog procurando sobre quem tinha escrito sobre transplantes. Assunto que me provoca grande indignação.
O crescimento das filas para transplantes e do mercado negro leva especialistas a cogitar a legalização de uma atividade que ainda repugna a maioria: a compra e venda de órgãos. Isso é um absurdo. A mídia podia fazer muito por esse assunto, principalmente os apresentadores de programas populares. No entanto...
Fiz um post com uma enquête sobre qual é o Pior apresentador (programa) da televisão brasileira. Gostaria que você comentasse e votasse.

Um abraço

Marco Aurélio

Angel disse...

OK, Marco, já votei.Foi bem difícil, creia.

Melhor deixar para apresentadores como programas tipo Fantástico que vem marcando algum gol dentro eventualmente. Como foi tem sido a matérioa do acompanhamento dos transplantes das três irmãs de SP ou mesmo a reportagem sobre "revolução nos transplantes" que me levou ao tratamento que me permitiu realizar meu último transplante. Se tiver alguma idéia, estamos em época de campanha

Abraço
Angel