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sexta-feira, agosto 18, 2006

Solo




Recomecei o semestre no Parque Lage-” Da observação à expressão”. Utilizamos o desenho de modelo vivo para recriar o universo plástico. Atelier cheio, cavaletes, carvão, tinta acrílica. A superfície, papel.
Sim ! Estou no lugar certo. Meu chão, onde encontro raizes. Não pude seguir o caminho da arte como acreditei aos quatorze anos. Pintava onde alcançavam minhas mãos e meu pensamento. As paredes do quarto, portas, papéis, telas. Não era uma paixão, era uma necessidade. Do carvão à tinta a óleo. Três anos depois, fui “aconselhada” por um médico, a parar de pintar.
A modelo chegou, deve ter uns 24 anos, despe-se completamente. Começo a observá-la. Alonga-se sobre o o pequeno tablado. Um gato aparece. Gatos adoram corpos em movimentos suaves. Posta-se ao seu lado e determinado ficará quase até o término da aula, não sem antes desfilar sobre meus desenho dispostos no chão. Cada postura dura pouco tempo, apenas o necessário para uma mistura de desenho cego com esboço de formas. Ainda não há cor, somente o carvão. Passo para um olhar analítico, as posturas que ela permanece são complexas, os planos se cruzam, mas deixo a mão ir. Vou aos detalhes muito rapidamente. O contorno dos pequenos seios, penso, como os meus. Observo mais atentamente, quadris largos, há curvas definidas, um ou outro músculo pode ser delineado. O tempo para cada postura é curto. O principal é captar a essência, ao menos neste momento.
Notei quando cheguei que os cavaletes em frente ao tablado estavam vazios. Lá coloquei minhas coisas. Pior lugar para ficar
Meus olhos se deparam com os dela. Fico confusa. Quem observa quem? Sorrio, ela retribui. Está ali. Lembro-me novamente da essência, o que nos une naquele momento. A busca pela autenticidade. Quando perdemos nossa naturalidade? O frescor e a leveza da simplicidade?...Está descomplicando, graças a Deus. Mollica me ajuda com a melhor forma de explorar o carvão e a observar as linhas. Tudo para Kandisnky é ponto ou linha, ouvi Gianguido Bonfanti explicando na semana passada. Comentou o livro “Do espiritual na arte”, novamente Kandinsky, praticamente devorei o livro. Sabe, não sei degustar. Fruto da ânsia de viver. Vejo lá na pg 13 quando o autor fala sobre a ressonância: “essa ressonância espiritual, essa necessidade interior, constituem o princípio básico de todo trabalho criador. O pintor deve procurar antes de mais nada, entrar em contato eficaz com a alma humana, única garantia de profundidade cósmica da arte”.
....
Fui na exposição de Degas-O universo de um artista- no MASP. Segundo se depreende, Degas era um misógino, voyer de hipódromos, palcos, locais de banhos e bordéis. Há um universo de cavalos, bailarinas e mulheres no banho. Na seção de bordéis estão tb gravuras que Picasso fez sobre o comportamento um pouco "distante" de Degas. Observo dois universos diferentes sobre o mesmo tema e, Picasso, definitivamente me arrancou muitos risos. A obra central é uma escultura da pequena bailarina de quatorze anos. Não sabia que Degas foi um magnífico escultor. Essa bailarina, única obra de escultura exposta por Degas em vida, causou muita inquietação na época, leio. A bailarina é simples, olha para o alto e não para o observador. Está numa cúpula de vidro e veste saia de pano. Sim, ela é viva! É orgânica! Por isso veste e não é vestida. Causa inquietação pelos contrastes.Sinto-me completamente absorvida por ela. Unidas por um elo atemporal. A cúpula de vidro, conheço bem essa sensação. Exposição, caso clínico, alma em distanciamento, adaptação-desadaptação, distanciamento.
Parei no centro do salão do Masp, olhei todo o conjunto da obra, inclusive os demais artistas contemporâneos de Degas, ali presentes. Havia muita vida ali, voltei o olhar para a bailarina, o vidro.... Ela era a alma de Degas. Sua forma de estar no mundo. Tão à parte e tão imerso em suas observações. Olhando para si mesmo. Sua alma, seu olhar cósmico. Intocável.
Voltei a olhar a modelo. Momentaneamente nossos olhares se cruzaram.
Orlando Mollica comenta os trabalhos-“o desenho deve ser como a caligrafia, espontânea, a cabeça não deve interferir tanto”.
Preciso muito disto

Angel

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