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domingo, maio 21, 2006

Teatro da vida



"Toda nossa cognição principia nos sentimentos" Trivulsiano, 45a Bibloteca do Palácio, Milão

Ainda estamos engatinhando sobre a compreensão dos princípios da integralidade, processo saúde-doença e humanização no sistema de atendimento hospitalar e ambulatorial.

Sexta-feira fui convidada a proferir uma palestra na UniverCidade num evento de fisioterapia. Lá chegando encontrei no auditório do teatro (gelado) sentado em sua cadeira de rodas, no centro do palco, um colega tetraplégico. Compondo o cenário, uma professora de fisioterapia (outra colega) e, ao fundo, as projeções referentes à aula de traumatismo raqui-medular. Ao dar exemplos a palestrante apontava para o rapaz na CR, seu paciente, inclusive. Eu ali, pega de surpresa aguardando para saber onde ele entrava naquela história. Ao final, ele foi convidado a falar sobre a influência da fisioterapia no seu tratamento. Ele toca a falar dos beneficíos da fisioterapia e todos percebem suas grandes limitações, coragem e sua luta. Inclusive para respirar, visto que sua lesão medular é de nível muito alto e, portanto, ele precisa de respirador para auxiliar em sua oxigenação. Muito crítica e muito louvável sua participação.

Em seguida o coordenador da mesa ataca com a sutileza de uma avalanche sobre um passarinho:- Você, fulano, é o sonho de todo fisioterapeuta! Um livro aberto de consulta e aprendizado (descreve tudo que se pode aprender com as doenças de fulano) e, ao final, arremata que a fisioterapia tem uma grande interesse nos aspectos da humanização do tratamento do doente em geral. Nesta altura eu já não conseguia olhar para o palco, nem para os lados. Minha respiração chegou a falhar, pensei que havíamos voltado à epoca de Descartes e tinha à minha frente uma mesa de dissecção e um cadáver exposto. Corpo, anatomia e doença em exposição. Voltei o olhar e tentei encontrar os olhos do colega na CR e estavam no vazio. Talvez avaliando se precisava realmente ouvir aquilo, se expor daquela forma, tanto sacrifício, tanto frio, muito frio. Ambiente gélido de sensibilidade e compreensão da pessoa que sofre uma doença. De estar doente, local no qual se encontrava sozinho naquele momento. Local, onde ninguém ali, gostaria de estar, mas adoraria estudar.

Ficou evidente tb o que já venho percebendo há muito tempo. A Fisioterapia, que vem crescendo assustadoramente, em sua luta pelo mercado de trabalho comprou o discurso da medicina ocidental sedimentada no modelo biomédico, da terapia baseada em evidências, no máximo da cientificidade. Nada contra até o momento que o pesquisador adoece e se vê frente à frente com números, estatísticas e consultas de doze minutos nas quais pouco se entende de gente. Devemos pesquisar, publicar, contribuir para o desenvolvimento de técnicas e procedimentos, e, na docência, formar profissionais da saúde com uma visão mais integral e abrangente. Mas, se nem mesmo os profissionais da "academia" refletem sobre o adoecer e as bases do sofrimento como ousam estudar a clínica sem esse suporte?

Era minha vez, precisa proferir a palestra. Antes, fui até o meu colega, parabenizei-o, toquei nele. Não sei se compreendeu que não estava aprovando todo aquele espetáculo, mas sim apoiando seus ideais, pois em dado momento ele havia dito sobre seu desejo de ajudar outras pessoas que se encontram deprimidas e desesperançadas frente à doença. Eu também já fiz isso, dei meus depoimentos acalorados em prol da causa em eventos diversos. Mas, na sexta-feira, naquele teatro, transcendi um pouco no cenário da vida e percebi que muitas boas intenções são frequentemente manipuladas em prol de causas institucionais que nada tem de humanizadoras e libertadoras.

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Tentei dar meu recado: arte, sensibilidade e tecnologia aliadas à um tratamento no qual, saúde, motivação e integralidade, devem ser as bases da compreensão do humano

Sei que grande parte de minhas críticas são fruto de minha história mas, se tudo isso tem algum valor, que seja para ajudar a transformar o sofrimento daqueles envolvidos no adoecer em algo bonito de se ver.

Angel

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