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sábado, outubro 07, 2006

Traço




Parque lage, Escola de artes Visuais, aproximadamente 21:30. Dificuldades com o traço. Minha segunda aula de desenho com tinta sobre papel. Lembrar que a questão é da "observação à expressão".

Hoje temos uma modelo magra de cabelos castanhos escuros. Já tivemos muita gente bonita por aqui; lutador de Muay Tai, morenos sarados, mulheres de feições suaves. Nenhum gordinho, amputado, mastectomizada ou cego...Parece que já houve modelos diferentes no ano passado.

Sala cheia, todos os cavaletes ocupados. O ateliê é no subsolo da casa que foi de Henrique Lage. Tenho ocupado o cavalete em frente a cadeira onde senta-se o prof. Mollica (ou um artista professor, ou por outra um artista que por meio de sutilezas vai interferindo no aprendizado do desenho). A modelo está com um chapéu e uma canga preta com pequenos desenhos em branco. Suas posturas são pouco naturais. Notei quando ela se maquiou no início da aula. Cada modelo tem seu jeito de ir se despindo. Alguns chegam e mandam ver. Alongam-se ao natural. Outros vão se despindo aos poucos, aproveitando o efeito dos tecidos e, finalmente, há aqueles que nunca se despem. Ocultam os partes aqui e ali. Noto que as mulheres tem mais dificuldade. Os homens adoram se exibir... É muito interessante como nosso olhar pode ser modificado. Há o corpo nú observado pelo olhar clínico, artístico, piedoso, sarcástico. Nem sempre é o corpo por si só que modula o olhar, mas a intenção de quem olha. Preocupo-me em como percorrer linhas e curvas, ondulações, traços em busca de uma forma conhecida, de uma representação. Estou cansada à esta hora, não atribuo ao dia puxado, mas a rigidez da postura da moça. Reflito, trabalhe isso em você, procure modificar seu olhar. Os trabalhos não caminham bem, o que pode ser conferido na primeira foto. Mollica que me observa de sua cadeira é sutil e me dá o código:

" Parece pintura Renascentista, nem se vê a linha..................................tá bonito"

Olho pra traz e ele está afirmando com a cabeça. Não senti nenhuma convicção. A tradução menos educada seria: Está uma M. Não há traço, só uma busca pela representação natural. Não chegará a lugar nenhum assim, só ao bonitinho. Viro-me novamente para dizer: "Entendo"

Mudo a folha. A modelo deita-se agora no chão e relaxa. Basta ver a postura adotada: pernas apoiadas para cima, uma sobre a outra. Puxa a canga sobre um seio. Ela busca ocultar o rosto com o chapéu. Mollica aproxima-se e retira-o gentilmente, já há muito sob os panos. Não aprenderemos pintando panos e chapéus, precisamos de pele, rosto, e cor. Eu mudo da posição de pé para sentada no banquinho. Respiro, limpo os pincéis, relaxo os ombros. Começo com movimentos sutis sobre papel, apenas buscando delinear o traço, a tinta bem fluida. Detenho-me nos contornos, sugestões de pés, pernas, curvas com as quais brinco. O rosto, não podia vê-lo de onde me localizava, usei a imaginação. Esqueci-me do entorno, tanto faz, não quero mais resultado bonito. Não sei o que quero, talvez somente seguir o caminho do traço. Ele que me leve. Sutilezas. Apenas a linha sobre o papel. Sei que não julgava mais naquele momento.

Ouço uma voz, devem estar falando comigo. Aprendi que devo olhar sempre que há uma voz, pois pode ser comigo e não posso saber se não olhar. Era. Moliica estava falando, chamando minha atenção. Dizia algo como: "Sim! Agora há um traço com sangue! Mudou completamente. Pode parar, pode parar! Não precisa colocar mais nada." Levanto-use e retirou meu papel do cavalete. Gostou também do trabalho que veio a seguir e o nosso tempo se esgotou.

A modelo adota muitas posturas durante a aula e não temos mais que 10 minutos para trabalhá-las. Isso faz parte do método, creio. O tempo limitado força-nos a buscar a essência, de outra forma não terminaríamos nenhum desenho sequer.

Os trabalhos são dispostos no chão e comentados ao final. Foi uma noite rica e de muitos questionamentos. Porque é tão difícil deixar de lado as representações, as formas rígidas e padronizadas? A mente curiosa deve sondar as ambiguidades da visão.

Mollica cita Deleuze, a importância da filosofia na pintura. Discorre sobre a naturalidade do comportamento infantil que transparece no desenho. Falou-nos sobre a necessidade de ultrpassarmos o paradigma cartesiano E veio a seguir a física quântica. Desejava tanto ouvir tudo! Precisei usar muita imaginação e meu conhecimento teórico. Em cada trabalho fazia comentários: "...aqui a forma foi sugerida pela cor... jogue fora todo o resto, somente neste trabalho há vida" (e sabíamos que ali havia uma possibilidade). Uma aluna que havia começado ontem, muito ansiosa, indagou sobre a prática do desenho, que ela jamais conseguiria aprender sem orientação. Mollica explica sobre o caráter eminentemente prático do desenho. Não há como ensinar a andar de bicicleta. Uma hora vai. Algumas destas perguntas são aquelas que terei de me confrontar de agora em diante: Como se aprende? A prática deve preceder a teoria? Existem fórmulas prontas? O que influencia em nosso modo de ver e de fazer? Como nos libertar de estereótipos?

O trecho abaixo tanto pode se aplicar a arte quanto à educação. Retirei do livro "Arte e Ilusão", de Gombrich:

" ...O artista que deseja "representar uam coisa real (ou imaginada) não começa por abrir os olhos e olhar em volta, mas por tomar cores e formas e construir a imagem requerida. A razão pela qual muitas vezes esquecemos essa simples verdade é que em muitas pinturas do passado toda forma e toda cor significavam uma coisa só na natureza- o marrom servia para troncos de árvores, o verde para folhas, A maneira usada por Dali para deixar que cada forma representasse várias coisas ao mesmo tempo pode concentrar nossa atenção nos muitos significados possíveis de cada cor e forma-exatamente como um jogo de palavras bem feito nos faz perceber a função das palavras e o seu sentido"

Preciso encontrar uma forma de conciliar em meus estudos, arte e aprendizagem. Senão, como continuar meu trabalho, sem o necessário tempo para a prática do desenho e pintura, capazes de me retirar do lugar comum, transpondo-me para o universo de criação.

Angel

2 comentários:

Anônimo disse...

Angela, sempre temos que encontrar tempo para realizarmos nossos sonhos e aspirações. A arte e o científico, estou começando entender melhor o que você disse. Bjs! Grace Jacobina

Angel disse...

Sonhar neste mundo "real" também é uma arte

Um beijinho, Grace!