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sábado, março 04, 2006

Caderno de poesias

Olhem só! Tem um inseto no meio das pedras, a bolinha alaranjada. Tentativa frustada de fotografar com o celular. Mas gostei do resultado final, uma distorção interessante, embora não fosse proposital
E tem sido assim... reconstrução diária.
Busca de novas possibilidades, de olhar o velho de outro modo
Reformular lembranças até deixá-las doces ou neutras (sei que não há neutralidade, mas ao menos lembranças mais mornas)
Lembro-me de um rapaz que atendi há muitos anos atrás, na verdade ele foi meu primero contato com alguém com sequelas de traumatismo raqui-medular. Ele havia sofrido um acidente automobilístico e lesou a medula à nível da sexta vértebra cervical. Seus movimentos limitavam-se a cabeça, ombros, antebraços e punho. Da linha do tórax pra baixo, incluindo mãos, nada, nadinha. Nenhuma sensação, nenhum movimento. A evacuação um sofrimento, xixi só com sonda e jontex. Vida social, lazer, ocupação e sexualidade...enfim, ele quase não saía de casa e era completamente dependente de seu irmão mais velho (também muito jovem). Moravam com a mãe. Precisava fazer uma visita domiciliar para orientações a família e fazer uma adaptação que lhe permitisse segurar um lápis para escrever utilizando o movimento do punho.
Ele estava numa cama hospitalar e logo soube que permanecia ali grande parte do tempo. Tirei as medidas das mãos, e comecei a fazer a adaptação. Foi quando ele pediu para que seu irmão trouxesse seu caderno de poesias. E o irmão trouxe, e Francisco leu. Leu uma, leu outra, eram bonitas, eram lembranças de um tempo que ele não queria esquecer. Era o que queria me oferecer naquele momento. Sua identidade, algo muito além de limitações motoras e sensoriais, muito além da paralisia. Nos versos havia movimento, sensibilidade, memórias de um passado que tornavam o presente mais suave.
Havia muito por fazer, ele precisava adptar-se a sua realidade atual, motivação, vida social, sim eu sei, mas naquele momento deveria tê-lo ouvido mais. Eu pensava em "devolver-lhe" a escrita e que o tempo era curto e, e, e.....
Resta dizer que não ouvi o tempo suficiente, ou melhor acho que deveria ter "esquecido" todo o resto e ter me sentado ao seu lado colocando-me a escutar suas poesias. Qualquer outra coisa poderia ter ficado para depois (provavelmente eu era a sua única "visita" há anos). Era tão claro o seu desejo.
Por quê temos a tendência de não ver o óbvio?

Angel

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