Total de visualizações de página

terça-feira, março 14, 2006

Conversas ao pé da pia

Só há uma pia no Parque Lage destinada a lavação (como se diz em Floripa) de pincéis. Ao pé da pia é onde nos apresentamos. Enquanto retiramos os resíduos das tintas e vemos a água escorrer colorida surgem perguntas esparsas, apresentações e aos pouquinhos as pessoas vão se revelando. Conheci Julieta, Gustavo, Chico...os pincéis precisam ser lavados constantemente, é sempre assim. Julieta perguntou-me se sou estrangeira, acha que tenho um sotaque. Digo que sou mineira mesmo, há muitos anos no Rio. Ocasionalmente alguém estranha minha pronúncia. Eu mesma tenho sentido assim e percebo que há uma íntima relação com minha perda auditiva. Minha audição é para mim, um tormento. Imagino que se alguém pudesse de uma hora para outra, entrar em meu corpo e "ouvisse" da forma que hoje ouço, enlouqueceria. Sei do que estou falando, pois fui perdendo a audição gradativamente. Hoje pequenos ruídos percebo como estridentes, e sons muitos altos como uma vibração muito incômoda em todo o meu corpo. Só discrimino do lado esquerdo e quando alguém buzina do lado direito tendo a olhar para o lado esquerdo. Foi assim no domingo passado, dois caras buzinaram no sinal, levei um susto e olhei para o lado contrário, quando meu cérebro deduziu o lado certo, eles estavam rindo para mim. Ri de mim mesma e de quebra dei uma paqueradinha. Entender o que acontece é um desafio diário que me deixa exausta ao final do dia. Exposta como estou a todo tipo de estímulos; pacientes afásicos, mulheres falando juntas, trânsito, músicas que sinto pelos poros...perdi a noção do que realmente ouço e o que é ruído de fundo. Geralmente quando não discrimino pergunto a alguém:- O que foi isso? Uma criança gritando, dizem-me, algo que ouço como um apito.
Vi algumas pessoas queridas ficarem surdas (todas falecidas), minha avó, meu hepatologista (o melhor do RJ), meu grande amigo Hélio Barbosa que me iniciou na política social da Associação dos transplantados pelos idos de 87. Somente minha avó não disfarçava. Ela respondia o que dava, quando dava, respondia ecologicamente digamos assim. Frente à vida profissional, social, de relações, não tenho muitas saídas. Procuro não cansar muito meu interlocutor e também a mim mesma, mas dou muita mancada. Como não consigo dissimular, muitas vezes, páro tudo que estou fazendo e me aproximo e vou logo dizendo assim:- Preciso chegar mais perto de você. Leio imagens em movimento, faço associações, invento outro tanto. Começo realmente a acreditar que sou uma pessoa criativa.
Ouço o meu ruído interno, meu adorável pano de fundo, e fotografias do mundo dos sons.
Cochichos ao pé do ouvido, galanteios, sons naturais, piadas, música sem distorções, ruídos sem dor, um mundo sonoro que ficou em algum lugar na minha memória auditiva e que vai se afastando aos poucos.
Ouvir, não ouvir, espaços vazios e cheios, reticências, pausas, respiração em suspenso, ansiedade.
Começo a assumir minha impotência frente a tudo isso. Deixo ir e vir.
Sempre admirei minha avó, meu hepatologista e meu amigo Hélio Barbosa, então saibamos viver com nossas limitações
...
Voz pausada, que me olha nos olhos e espera por minha resposta, conheço alguém assim
Hora de ir embora, havia um gato dentro da carroceria do carro
Angel

Nenhum comentário: